A NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA E A REJEIÇÃO AO CARINHO:

uma análise psicanalítica

Benedito silva

Graduado em Serviço Social

Especialista em Gestão do SUAS

Especialista em Psicanálise

RESUMO

Este artigo analisa, à luz da psicanálise e da psicologia social, o fenômeno da naturalização da violência e a consequente rejeição ao carinho. Parte-se da compreensão de que sujeitos expostos continuamente a contextos violentos tendem a internalizar padrões relacionais nos quais a agressividade é percebida como linguagem de afeto. O trabalho busca problematizar a resistência ao cuidado e ao respeito como uma manifestação defensiva do psiquismo, fundamentada na compulsão à repetição, nos mecanismos de defesa e na dificuldade de ressignificação simbólica do trauma. Conclui-se que a aceitação do carinho implica um processo terapêutico de elaboração, no qual o sujeito precisa desconstruir crenças internalizadas e se reconhecer como digno de afeto legítimo.

Palavras-chave: violência; afeto; psicanálise; naturalização; rejeição.

INTRODUÇÃO

A violência interpessoal, em suas múltiplas formas, quando vivenciada de modo recorrente, tende a se constituir como um padrão internalizado de relacionamento. O sujeito exposto a tais experiências não apenas sofre suas consequências imediatas, mas também aprende a interpretar a agressividade como expressão de proximidade e, por vezes, como demonstração de amor. Nesse cenário, o carinho e o respeito podem ser percebidos como elementos estranhos, cuja presença ameaça desestabilizar crenças consolidadas ao longo da história subjetiva.

A presente reflexão propõe analisar esse fenômeno sob o viés psicanalítico, buscando compreender os mecanismos que levam indivíduos a rejeitar o afeto e a acolher a violência como algo natural.

DESENVOLVIMENTO

A compulsão à repetição e a naturalização da violência

Freud (1920/1996), ao conceituar a compulsão à repetição, evidencia como o sujeito tende a reviver experiências dolorosas na tentativa inconsciente de dominar o trauma. Nesse sentido, a repetição de vivências violentas pode consolidar-se como estrutura psíquica, onde a agressividade é assimilada como linguagem predominante. A naturalização, portanto, não se reduz a um fenômeno social, mas também psíquico, enraizado na economia libidinal do indivíduo.

A psicologia social corrobora esse entendimento ao apontar que o aprendizado de comportamentos agressivos em contextos significativos contribui para sua perpetuação. Bandura (1973) sustenta que o processo de observação e imitação reforça a aceitação de padrões violentos como normativos. Assim, a violência deixa de ser interpretada como ruptura da ordem relacional e passa a ser reconhecida como parte constitutiva dela

O estranhamento diante do carinho

Ao ser confrontado com o carinho, o sujeito que internalizou a violência vivencia um desencontro simbólico. Lacan (1964/1998) sublinha que o inconsciente é estruturado como linguagem, o que significa que apenas significantes inscritos na história subjetiva podem ser decodificados e assimilados. O carinho, não tendo sido inscrito como signo de amor, emerge como elemento enigmático, difícil de ser processado.

Essa rejeição, contudo, não deve ser interpretada como ódio autêntico dirigido ao outro, mas como defesa frente à possibilidade de reconhecer que a violência jamais foi expressão legítima de afeto. Melanie Klein (1946/1991) explica que, diante da angústia intolerável, o sujeito recorre a mecanismos como cisão e projeção, distorcendo a realidade para preservar a integridade psíquica. Assim, o carinho pode ser vivido como ameaça e, por isso, recusado.

A resistência à transformação

A aceitação do afeto exige uma desconstrução das crenças internalizadas e uma reinterpretação da própria história. Winnicott (1965/2001) destaca a importância do “ambiente suficientemente bom” no desenvolvimento saudável do self. Quando esse ambiente falha, as defesas do indivíduo tornam-se rígidas, dificultando a abertura a novas experiências.

Nesse sentido, o contato com o carinho convoca o sujeito a reconhecer a inadequação do passado, revisitar feridas e reposicionar-se no presente. Tal movimento é frequentemente doloroso, pois implica abandonar identificações que, embora nocivas, sustentam a estabilidade psíquica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A naturalização da violência e a rejeição ao carinho constituem um paradoxo revelador da complexidade dos processos psíquicos. Ao aceitar a violência como padrão e resistir ao afeto, o sujeito não demonstra incapacidade de amar, mas atua defensivamente diante do risco de revisitar traumas profundos.

A superação desse ciclo demanda um processo de elaboração simbólica que possibilite ao indivíduo desconstruir narrativas internalizadas e reconhecer-se como merecedor de respeito e cuidado. Nesse contexto, a psicanálise e a psicologia oferecem recursos teóricos e práticos para compreender e intervir nesse fenômeno, favorecendo trajetórias de ressignificação e emancipação subjetiva.

REFERÊNCIAS

Bandura, A. (1973). Aggression: A social learning analysis. Englewood Cliffs: Prentice-Hall.

Freud, S. (1920/1996). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago.

Klein, M. (1946/1991). Notas sobre alguns mecanismos esquizóides. In: Escritos de Melanie Klein. Rio de Janeiro: Imago.

Lacan, J. (1964/1998). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Winnicott, D. W. (1965/2001). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artmed.